Quando Tom Cruise corre, o cinema acontece! - crítica de Missão Impossível: O Acerto Final (2025)
A série de televisão Mission: Impossible, criada por Bruce Geller em 1966 e exibida por sete temporadas, ganhou uma continuação com mais duas temporadas em 1988. A trama seguia as missões de uma agência secreta de espionagem chamada IMF (Impossible Missions Force). Anos depois, inspirados na série, Tom Cruise e Paula Wagner, através da Cruise/Wagner Productions, conceberam uma franquia cinematográfica de ação, que viria a se tornar uma das mais duradouras do cinema contemporâneo. A ideia inicial era traduzir o projeto britânico da saga de espionagem mais famosa dos cinemas até então — o 007 de James Bond — para os Estados Unidos, mantendo o conceito de trabalhar com diretores diferentes que tivessem liberdade artística para criar.
Sob essa premissa, foram lançados quatro filmes entre 1996 e 2011: Missão Impossível (Brian De Palma, 1996), Missão Impossível 2 (John Woo, 2000), Missão Impossível 3 (J.J. Abrams, 2006) e Missão Impossível: Protocolo Fantasma (Brad Bird, 2011). Missão Impossível: Nação Secreta (Christopher McQuarrie, 2015) marcou uma mudança na abordagem da franquia, que optou pela construção de uma unidade estética em torno da parceria contínua entre Tom Cruise e Christopher McQuarrie nos filmes seguintes: Missão Impossível: Efeito Fallout (2018), Missão Impossível: Acerto de Contas (2023) e Missão Impossível: O Acerto Final (2025).
Divulgado pela equipe de marketing responsável como o último filme da franquia, Missão Impossível: O Acerto Final não é apenas o ponto culminante da saga, mas também a consagração de um estilo — o estilo McQuarrie-Cruise — que, muito inspirado pela filmografia de Buster Keaton, elevou o cinema físico a um novo patamar de espetáculo, ao mesmo tempo em que assumiu com desfaçatez suas ambições de construção do mito em torno da figura de Ethan Hunt (o que curiosamente produz um espelhamento entre ficção e realidade, considerando o status de “salvador do cinema” que Tom Cruise adquiriu nos últimos anos — "título" conquistado após o sucesso de Top Gun: Maverick (2022), lançado em plena recuperação da pandemia de Covid-19, quando a maioria dos grandes estúdios ainda apostava no streaming. Cruise insistiu na exibição exclusiva em salas de cinema e mostrou que o público ainda estava disposto a lotar as salas por um espetáculo visual de verdade, feito para a tela grande).
O protagonista das aventuras impossíveis passou de agente secreto arrojado no melhor estilo De Palma, ao heroísmo explosivo de John Woo, que foi alimentado pelos desafios seguintes de J.J. Abrams (responsável pelo que considero o pior — e único filme ruim — da franquia, além de uma das cenas de ação/aventura mais mal gravadas que já tive o desprazer de ver) e Brad Bird. McQuarrie assume em 2015, e a partir dali Hunt se transfigura de herói em mito, para, no filme derradeiro, finalmente se assumir como messias. Fato escancarado por diversos elementos do longa: a linha de diálogo que alcunha a IA como “senhor das mentiras”, a chave para derrotá-la em formato de cruz, e a dualidade criada entre Hunt — o único capaz de performar verdadeiros milagres — e a IA, que representa Lúcifer.
A ameaça da vez é A Entidade, uma inteligência artificial generativa com inteligência adaptativa que não apenas manipula dados, mas reconfigura a própria realidade digital, podendo até adulterar transmissões ao vivo. O falseamento da realidade choca sociedades inteiras, colocando os governos em clima de pré-guerra nuclear — o que força Ethan Hunt e seus discípulos a mais uma vez tentarem salvar o mundo do apocalipse.
Apesar de ambos os filmes abordarem criticamente a temática da inteligência artificial, Missão Impossível: O Acerto de Contas (2023) — que outrora teve o nome de Parte I — lida melhor com o estabelecimento dos desafios que a IA impõe à história. A estrutura narrativa dos filmes de McQuarrie coloca no caminho da disputa pelo MacGuffin1 etapas que justificam o “Impossível” do título. Sequências arriscadíssimas, com enorme senso de urgência, que em Acerto de Contas são frustradas exatamente pelas capacidades nefastas da IA. Ela cria barreiras, manipula a realidade, e força os protagonistas a questionarem não apenas com quem podem contar, mas também a própria tecnologia que usam para suas tomadas de decisão. Já O Acerto Final opta por retornar a um caminho mais conhecido pelos demais filmes da era McQuarrie, recentralizando a vilania na figura humana. Essa escolha, embora controversa por não registrar imageticamente o caos generalizado promovido pela IA — que manipula mídia e conhecimento —, entrega uma mensagem mais coesa, demonstrando o que acontece quando deixamos que inteligências artificiais tomem decisões que apenas nós, humanos, deveríamos tomar. Vale destacar que apesar desse retorno a uma zona de conforto, a temática "anti IA" ainda se faz presente no subtexto de confronto entre analógico e digital, que fica destacada em boa parte das resoluções de entraves ao longo do filme. Além disso, essa decisão desloca a disputa para um campo tangível, onde o cinema físico da sinergia McQuarrie-Cruise cria uma verdadeira coreografia da tensão.
É aí que a orquestração visual das sequências de ação se mostra como a grande virtude do longa. Desde Nação Secreta, a saga passou a priorizar a clareza da ação como marca estilística. Saber que Cruise dispensa dublês nas acrobacias perigosas entrega autenticidade e aumenta o impacto visual, evidenciando a complexidade dos milagres que Ethan executa. Como prometido no trailer, a busca pelo submarino russo Sevastopol é de prender a respiração — e realmente o é. McQuarrie entende o que o espectador deseja enxergar e expande sua câmera, permitindo que a criatividade da direção de arte de Gary Freeman salte aos olhos. O desafio é dividido em etapas, como a sequência do trem em Acerto de Contas, utilizando elementos do cenário como obstáculos e fonte de perigo.
Decisões como essas — planos abertos, coreografias legíveis, cenografia que transforma os espaços em dínamos de contratempos — revelam o fascínio de Cruise e McQuarrie pelo gesto, pelo risco, e pelo esforço do corpo em cena. É como se a própria câmera, ao filmar Hunt correndo, escalando, pilotando — embalado pela trilha sonora de Max Aruj e Alfie Godfrey, que renova os temas de Lalo Schifrin com contorno épico — celebrasse a resistência do humano diante da desordem digital.
Talvez essa seja a grande sacada dos últimos filmes da franquia e, por conseguinte, de O Acerto Final: compreender a devoção à ação como ponto alto da experiência cinematográfica. Isso se revela até na forma de construção narrativa da dupla McQuarrie-Cruise, que parte do “set piece” — a cena de ação em si — e costura a história ao seu redor, invertendo a lógica tradicional do roteiro. O resultado disso é a aflição do espectador, que se agarra a poltrona, apreensivo, assumindo sua passividade e torcendo pelo salvador Ethan Hunt, durante quase 3 horas inteiras, sem perceber o tempo passar. Obviamente, mérito da montagem de Eddie Hamilton, que alterna com fluidez entre as cenas de planejamento e execução, também sabendo dosar momentos de intensidade e calmaria.
Esse modelo de construção narrativa da dupla dinâmica dos últimos quatro filmes, quase custou a compreensão do público neste capítulo final, principalmente no primeiro ato, onde acontece uma duplicidade temporal, em que o que estamos vendo acontecer já foi, em algum grau, previsto, ensaiado ou antecipado. Isso cria um ritmo nervoso que poderia ter se perdido, mas que, felizmente, foi controlado pela edição — quase como em um zigue-zague entre expectativa e realização —, transformando cada ação em um palimpsesto2, sobre o qual se sobrepõem os cálculos de mocinhos e vilões, imprevistos e improviso. Um claro reflexo da correria que se tornou finalizar essa história, que seguindo os padrões de escala da saga, atingiu o ápice da megalomania.
Acontece que é justamente quando os riscos são maiores que Tom Cruise parece se sentir mais instigado — e o ato de se colocar na posição de messias possivelmente também alimenta seu lado narcisista, de salvador do cinema. Fissurado em si mesmo ou não, com mania de grandeza ou não, no fim das contas, assistir a O Acerto Final é se deleitar com o trabalho de uma produção idealizada por um apaixonado pela sétima arte, que compreende que o cinema existe no risco, na entrega keatoniana3, na apneia do último milésimo que antecede a explosão de uma bomba.
Com o filme encerrado e, de acordo com o que foi divulgado, com a franquia também encerrada, não restam dúvidas de que Ethan Hunt ultrapassou o arquétipo do espião clássico. Fazendo jus ao que uma tradução estadunidense correta de James Bond deveria ser. Missão Impossível: O Acerto Final eleva o protagonista a um nível messiânico, centralizando as dores e responsabilidades do mundo em sua figura, esperando que isso seja suficiente para que ele opere milagres. E desde 1996, ele sempre consegue. Quando Tom Cruise corre, o cinema acontece.
MacGuffin: elemento narrativo utilizado para impulsionar a trama de uma obra de ficção, motivando as ações dos personagens, embora sua natureza específica seja frequentemente irrelevante para o desenvolvimento da história. O conceito se tornou popular por Angus MacPhail e Alfred Hitchcock, na década de 30. Hitchcock, em 1939, durante uma palestra na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, delineou o conceito: "Pode ser um nome escocês, tirado de uma história sobre dois homens em um trem. Um homem pergunta: 'O que é aquele pacote lá em cima no bagageiro?' E o outro responde: 'Ah, é um MacGuffin'. O primeiro pergunta: 'O que é um MacGuffin?' "Bem", diz o outro homem, "é um aparelho para capturar leões nas Terras Altas da Escócia". O primeiro homem diz: 'Mas não há leões nas Terras Altas da Escócia', e o outro responde: 'Bem, então isso não é um MacGuffin!' Então você vê que um MacGuffin na verdade não é nada."
Exemplos: os planos da estrela da morte, em Star Wars: Uma Nova Esperança (1977); o santo graal em Indiana Jones e a Última Cruzada (1989); o pé-de-coelho de Missão Impossível 3 (2006).
Palimpsesto: Na Idade Média era comum que fosse feita a raspagem de papiros ou pergaminhos, no intuito de promover a reutilização deles, considerando o custo elevado do produto. Palimpsesto era o nome atribuído a esses objetos. Comumente utilizado, em contextos mais amplos ou metafóricos, como representação de qualquer texto, memória, objeto ou mídia que condense camadas de informação, onde uma é sobreposta a outra, mas a anterior ainda está lá, visível ou discernível.
Referência ao fazer cinematográfico de Buster Keaton. Ele foi um ator, diretor e comediante do cinema mudo, conhecido por sua expressão séria (stone face), humor visual e expoente de um cinema mais físico, com acrobacias precisas e cenas arriscadas. É um dos maiores nomes da comédia cinematográfica, influenciando gerações — inclusive Tom Cruise, dentro da franquia Missão Impossível, que se inspira em suas sequências de ação perigosas, e realizadas em sua maioria, sem a utilização de dublês.