As telas que nos enxergam: cinema de rua, pertencimento e resistência em Porto Velho
Na tarde do domingo, 04 de maio, assisti à exibição de contrapartida do curta Só Por Hoje, de Abhay Alberto. Ainda naquela noite, ao fim da sessão e do debate pós-filme, tive certeza de que não era apenas a ausência de resolução no drama do protagonista, Edson, que me inquietava. A cada cena em que Porto Velho surgia ao fundo — viva, transitando em sua própria rotina enquanto o vendedor de picolé caminhava por ela —, eu também, de alguma forma, me identificava. Foi entre as imagens da cidade e as paredes do Cine Veneza que compreendi que não se tratava de mera ficção. Aquela sessão e o lugar de exibição escolhido, junto das escolhas de mise-en-scène1 e mise-en-cadre2, eram um gesto de declaração de pertencimento — algo que outros filmes rondonienses também compartilharam no último mês: Planeta Fome (escrevi uma crítica deste filme aqui no site, confira na íntegra), Memórias Fantasmas e Como Matar um Rio foram exibidos no Tapiri Cinema da Floresta, assim como Concerto de Quintal, que será exibido no dia 09 de maio, nesta sexta-feira, na mesma sala.
Durante o debate que se seguiu à exibição, o diretor Juraci Júnior (Nazaré: Do Verde ao Barro, Quimera, Balanceia e Concerto de Quintal) destacou um ponto crucial: muitos dos curtas e longas ficcionais realizados em Rondônia nos últimos anos — sobretudo os contemplados por editais públicos, como a Lei Paulo Gustavo — têm optado por contar histórias que, apesar de universais, se passam intencionalmente em Porto Velho. Essa escolha consciente é um posicionamento afirmativo. Ao ambientar narrativas dramáticas, familiares, íntimas ou criminais na capital, os realizadores reforçam que o cinema feito aqui não é “local” ou “regional” no sentido de algo menor — é cinema, ponto. E tem endereço.
As câmeras dos nossos diretores — tanto os que lançaram filmes este ano quanto os que constroem a história do fazer cinematográfico rondoniense, como Abhay Alberto, Édier William, Geanderson Mosini, Chicão Santos, Juraci Júnior, Simone Norberto, Kaline Leigue, Pilar de Zayas Bernanos, Fernanda Kopanakis, Lídio Sohn, Joéser Alvarez, Jurandir Costa, Beto Bertagna e tantos outros — não ocultam nossa capital, nem os muitos interiores do nosso estado. Ao contrário: revelam-nos nas águas, no céu, nas vestes, em trânsito, no calor, no barulho, nas casas e vielas reconhecíveis a qualquer portovelhense e rondoniense. Em Só Por Hoje, não é apenas Edson quem caminha pelas ruas da capital — é a cidade que anda com ele. O espectador, por sua vez, caminha também — não em busca de abstrações estéticas, mas de identificação. Isso gera uma experiência singular. E por mais que eu frequente cinemas desde a infância, essa sensação nunca me foi despertada nas redes como Cine Araújo ou Cine Laser. O que está em jogo aqui não é só o que se vê, mas onde se vê.
Nos cinemas de shopping, o cinema é coadjuvante. Ir ao cinema se tornou o “terceiro ato” de um passeio de consumo, e entrar em uma dessas redes é, antes de tudo, adentrar o antro do capitalismo materializado em espaço: entre a praça de alimentação e a loja de departamentos, existe um filme. O ritual da sessão perdeu o centro. Já nos cinemas de rua, como o Tapiri Cinema da Floresta ou o Cine Veneza — nossas últimas salas de exibição de rua —, a experiência é outra. Ir ao cinema é o programa. Não há distrações ao redor: trata-se de um espaço-tempo de imersão, de entrega. Talvez por isso, mesmo com pouco marketing (comparado às grandes redes), e sem blockbusters, essas salas lotem em exibições de filmes daqui — o que, de quebra, também derruba o argumento de que o rondoniense não tem interesse pela própria cultura audiovisual (mas isso é tema para outra discussão).
É nessa diferença entre cinema de rede e cinema de rua que mora o conflito. O cinema, como qualquer forma de arte, é produto do próprio tempo e não pode negar o contexto histórico em que surgiu. Nascido em pleno capitalismo industrial do século XIX, o cinema não escapou à lógica sistêmica que o cercava. Da gênese até a década de 1970, houve o auge dos cinemas de rua — que, com o surgimento dos shopping centers e as modernizações urbanas excludentes nas décadas de 1980 e 1990, foram sendo extintos. Esse processo não teve pausa, inclusive em nossa capital. Em 2019, o G1 publicou uma matéria reveladora da jornalista Ana Kézia Gomes: mais de 12 cinemas de rua foram fechados em Porto Velho desde 1912. O dado é alarmante, mas não surpreende. O esvaziamento desses espaços ocorre nacional e internacionalmente — e, pior, é ideológico.
Ao perdermos esses lugares, não perdemos apenas prédios: perdemos centros de memória, de formação de público, de fruição coletiva. Mais do que isso, permitimos a vitória simbólica de um modelo que, focado nos interesses de um oligopólio estrangeiro, nos tirou das ruas e nos levou às compras. O apagamento é real, e acontece como consequência da fome de lucro do sistema, que, para alimentar a indústria cinematográfica do Norte global, acaba engolindo o que nos faz povo. A ausência do cinema rondoniense nas grandes salas não é acidental — é parte de um projeto de silenciamento cultural. Quando nossos filmes não entram em cartaz, quando nossas histórias não ganham espaço, o recado é claro: não existimos para esse sistema. E, se não existimos nas telas, pouco a pouco deixamos de existir no imaginário coletivo. Nos cinemas de shopping, somos espectadores de fora — estrangeiros da imagem. Mas nos cinemas de rua, podemos ser mais: podemos estar em cena. O cinema, afinal, é construção de memória e de identidade. Só existimos nas telas que nos enxergam. E essas telas, em Porto Velho, resistem nas ruas.
Mais do que nunca, faz-se necessário estudar políticas públicas para o audiovisual, compreendendo não só a produção, mas também a manutenção dos espaços sociais de exibição dos nossos filmes. A criação do Tapiri Cinema da Floresta, com recursos que, salvo engano, vieram da Lei Paulo Gustavo, foi um sopro de ar fresco nesse cenário. Mas ainda nos resta o Cine Veneza — e não podemos permitir que ele tenha o mesmo destino do Cine Brasil, Cine Resky e Cine Lacerda. Ademais, seria desejável que o Cine Veneza se tornasse albergue do cinema rondoniense, nacional e internacional alternativo, exibindo filmes que convencionalmente não chegam à nossa capital.
Olhar para exemplos fora do estado pode ser proveitoso: em Natal (RN), a prefeitura abriu cinemas de rua para reformas; no Pará, a Fundação Cultural do Estado lançou edital para destinação de verbas ao segmento de cinemas de rua e cineclubes, com recursos advindos da Lei Paulo Gustavo; em Curitiba (PR), houve a modernização e revitalização do histórico Cine Passeio, além do Cine Guarani e da Cinemateca de Curitiba.
A luta pela preservação dos cinemas de rua não é apenas uma questão arquitetônica ou saudosista. É uma disputa por memória, por imagem, por existência. O cinema de rua é onde o cinema rondoniense acontece. É ali que resistimos, que celebramos, que nos reconhecemos. Enquanto houver uma sala de exibição em funcionamento nas ruas da nossa cidade, haverá esperança de que continuemos a nos ver — e a existir.
mise-en-scène: em uma conceituação simplista, refere-se a tudo o que aparece em tela e como é arranjado para tal. O crítico e teórico André Bazin, em seu livro O Que é Cinema?, aponta o conceito como o que há de mais essencial da arte do cinema. Jean-Luc Godard, um dos principais diretores do movimento francês, Nouvelle Vague, cita como "a verdade do filme. Não é o que se diz, mas o que se mostra". Trata-se do controle criativo orquestrado pelo diretor e executado pela equipe, em torno dos elementos visuais que compõe a encenação, tais como: cenários, figurinos, maquiagens, iluminações, atuações e movimentos de todos esses elementos em cena.
mise-en-cadre: conceito que tem caído em desuso, em virtude do fato de fazer parte do guarda-chuva conceitual da mise-en-scène. Análises reducionistas podem conceituar como a seleção e organização do que é encenado. Intimamente ligado com aspectos técnicos da cinematografia, o conceito concerne ao enquadramento, profundidade de campo e razão de aspecto dos elementos criativos disponíveis para serem encenados.




