O assassinato do Rio Madeira, ou o que resta dele, em Como Matar um Rio (2025)
Existe uma violência recorrente e nada silenciosa acontecendo, que todos os anos estampa as manchetes jornalísticas. Por afetar, ao menos momentaneamente, mais diretamente as comunidades ribeirinhas do Alto Madeira e seus afluentes — além de moradores de áreas urbanas e rurais de Rondônia — ela acaba sendo tratada pelos poderes, principalmente o Executivo e o Legislativo, como uma pauta política de baixa relevância: um problema reconhecido, mas negligenciado. Sai do centro das águas e é levado para as margens pelos banzeiros — e, curiosamente, é justamente às margens que mais fere. Como Matar um Rio (2025), de Chicão Santos, é um documentário que escolhe apontar sua câmera para esse assassinato em curso do Rio Madeira e sua biodiversidade, assumindo a tarefa de funcionar como um alerta vermelho audiovisual.
No documentário, em um primeiro momento, o espectador é convidado a acompanhar as jornadas de diversos trabalhadores ribeirinhos de diferentes localidades — como os distritos de Calama, Nazaré e São Carlos — e de variados nichos laborais, como o transporte fluvial, a pesca, a agricultura local, a educação, a arte e o esporte. Observamos a prática cotidiana desses ofícios, conhecemos suas histórias contadas por eles mesmos, e entendemos como e por que vivem nessas e para essas comunidades, além da profunda relação que os aspectos centrais de suas vivências e sobrevivências mantêm com o Rio Madeira. Educação, saúde, trabalho e lazer — todos direitos sociais fundamentais —, para essas populações, estão intimamente ligados, e por que não dizer, dependentes, da existência do rio. Já em um segundo momento, o documentário rompe essa dinâmica, revelando a dureza da realidade enfrentada por essas comunidades durante a seca histórica do Rio Madeira no ano de 2024, enquanto registra, simultaneamente, a densa fumaça das também históricas queimadas ilegais ocorridas no mesmo período. Acompanhamos atentos à destruição dos pilares que sustentam a vida dos ribeirinhos, que assistem, lentamente, à morte não apenas do rio, mas também de seu principal meio de transporte, de sua fonte de alimentos, de sua renda e, por fim, da plena fruição de seu lazer e cultura.
A estrutura narrativa adotada pelo filme é profundamente eficaz ao dividir esses momentos em blocos distintos. A montagem de Édier William opta por um registro de "antes e depois", permitindo que o espectador conheça, inicialmente, a abundância do cotidiano da cultura ribeirinha, para então se sensibilizar com a dor provocada pela degradação ambiental sem precedentes do Rio Madeira. Essa ruptura é também potencializada no campo estético, por meio da escolha de colorizar esses recortes de formas contrastantes. Enquanto a câmera acompanha os trabalhos cotidianos e as manifestações culturais e artísticas daqueles povos, o filme adota uma colorização policromática, que dá corpo à memória viva das pessoas que resistem, apesar das intempéries. No ponto de virada da narrativa, a monocromia invade a imagem como a fumaça que domina os céus de Rondônia. Esse gesto de linguagem torna a transição impactante e reproduz, de forma eficaz, a secura que toma conta daquela realidade — que, a partir dali, torna-se enevoada e, em certa medida, morta.
Durante a exibição, é inevitável perceber o compromisso ético na concepção do material documental, voltado à memória e à visibilidade de todas as comunidades visitadas — populações que resistem à margem dos grandes centros, frequentemente apagadas das decisões políticas e dos registros oficiais. Esse compromisso atravessa as imagens e as histórias escolhidas, mas se estende também à forma como a pós-produção lida com esses materiais imagéticos. Ainda assim, vai além: está presente no trabalho de Tullio Nunes, na captação do som direto durante a filmagem, e na edição e mixagem de som na finalização.
A paisagem sonora do filme é tão rica quanto a visual, atingindo um nível de detalhamento admirável. Ouve-se o farfalhar das redes de pesca do pescador beiradeiro sob sua canoa, os estalos da madeira da embarcação, o atrito do lápis riscando o papel nas mãos de um professor da comunidade, o impacto da tinta na tela vindo das mãos de uma artista plástica ribeirinha. Todo esse cuidado na captação e reprodução minuciosa desses sons transcende os limites da mera factibilidade técnica e contribui para a construção da dignidade e da centralidade daquelas existências. Esse trabalho sonoro permanece mesmo depois do sequestro das cores promovido pela devastação ambiental — o que, poeticamente, sugere que a violência sofrida por essas populações ainda encontra resistência. Uma resistência ruidosa, sustentada nos trabalhos, afetos e sonhos desses ribeirinhos, que seguem lutando pela própria sobrevivência.
Também reside na ideia de violência ambiental outro dos maiores acertos do documentário. O título não é metafórico: Como Matar um Rio assume uma posição clara, e a narrativa em nenhum momento sugere que os impactos ambientais acumulados nos últimos dez anos — que culminaram na atual precariedade do Rio Madeira — possam ser tratados como acidentes ou tragédias naturais. Participações como as das ativistas Txai Suruí (Walelasoetxaige Paiter Suruí) e Neidinha Suruí não apenas estabelecem uma ponte entre a luta dos povos originários e a luta ribeirinha, como também costuram as escutas dos entrevistados com a denúncia de um problema estrutural e politicamente orquestrado.
O assassinato em curso do Rio Madeira — ou do que resta dele — é real. Está nas usinas hidrelétricas que apagaram marcos históricos como a Cachoeira do Teotônio; nas queimadas promovidas pelo agronegócio; na expansão do gado e da soja; no garimpo ilegal; nas invasões e grilagens de terras indígenas; e no infeliz surgimento corriqueiro de refugiados ambientais que não encontram saída a não ser abandonar tudo o que conhecem como vida, por causa da necessidade de sobreviver. Como afirmado na abertura desta crítica, trata-se de uma agressão nada silenciosa, cujos sinais vêm sendo noticiados há anos.
Em 2023, Jaíle Quele Cruz publicou no G1 RO uma matéria sobre as cheias de 2014, traçando paralelos com a seca daquele ano. Sete anos antes, Ana Aranda, para o Amazônia Legal, já alertava sobre a insegurança hídrica provocada pela seca de 2016, comparando-a à, até então, mais alarmante, ocorrida em 2005 — e trazendo números sobre o avanço das queimadas que seriam superados pelos dados históricos registrados em 2024, conforme matéria de Caio Pereira (G1 RO). Em 2021, Ana Kézia Gomes escrevia sobre a importância da preservação do Rio Madeira para a manutenção da Bacia Amazônica, prevendo que a seca daquele ano poderia estar entre as mais severas já registradas. Em 2023, ao lado de Larissa Zuim, ela retorna com novo alerta: um levantamento do Projeto Aquazônia apontava a bacia do Rio Madeira como a mais impactada de toda a Amazônia brasileira. Não existe novidade, a desgraça é muita, acontece há tempos, e é com isso que o filme sustenta sua proposta.
Como Matar um Rio (2025) não oferece alívio. Ele termina como precisa terminar: coberto pela fumaça, com a cor drenada da imagem e da paisagem, e com a comunidade cercada pelo colapso. Não existe apelo à esperança, mas uma constatação amarga de um crime em andamento, que já foi muitas vezes filmado, noticiado, documentado e nomeado. No decorrer de seus blocos o documentário deixa claro que quando um rio morre, não é só a água que desaparece, mas também comunidades inteiras, compostas por pessoas que existem, que possuem os mesmos direitos sociais fundamentais que aquelas que insistem em alimentar um projeto de morte sustentado por interesses econômicos e omissões políticas reiteradas. São eliminados indivíduos que compartilham do mesmo desejo de viver e sentir os seus amores e celebrar sua própria cultura, que os seus algozes. Não é de hoje que existe a urgência de que aconteça uma mobilização política organizada para se tentar mitigar e reaver o que for possível desse massacre ambiental, e o documentário de Chicão Santos vem em ótimo momento, sugerir que façamos isso antes que todas as cores virem cinza, ou cinzas.



