Enquanto o Céu Não Me Espera
Filme assistido no dia de abertura da 3ª edição do Festival de Cinema de Rondônia, durante a exibição da Mostra Competitiva de longa-metragem, no dia 01/08/2025.
Vicente (Irandhir Santos) vai ao encontro de seu patrão para repassar o pouco que conseguiu salvar da safra prejudicada pela cheia do rio. Sua remuneração — executada por meio de repasse de mantimentos básicos para subsistência familiar —, que em tempos normais já é mal remunerada, em virtude do déficit produtivo, vem ainda menor. Inicia-se mais uma temporada de chuvas e, preocupado em perder a nova leva de plantação, Vicente e seu filho, Firmino (Maycon Douglas), tentam salvá-la a qualquer custo. O pai despenca e quase se afoga na água, berrando uma dor lancinante, enquanto se emaranha em meio às plantas que desejava salvar, e que, de certo modo, significavam a salvação da sua família. Mais tarde, Vicente acorda ao lado de Rita (Priscilla Vilela), sua esposa, e a percebe preocupada, cuidando dele utilizando conhecimentos ancestrais ribeirinhos. Durante a conversa, é contado ao patriarca que ele foi atacado por um poraquê e passou algum tempo desacordado e, nesse ínterim, a plantação não foi salva, pois não estava pronta para comercialização. Vicente, revoltado, busca levantar-se da rede onde repousava, quando, em um leve movimento de câmera descendente, é revelado que as águas que destruíram a plantação já invadiram sua casa de palafitas.
A referida sequência revela as intenções da narrativa dirigida pela amazonense Christiane Garcia, que, com riqueza de detalhes (ao ponto de dar destaque para feridas nas mãos de personagens que remam por horas), parece buscar uma história que observa um processo de desintegração em andamento. Aos poucos, como a cheia dos rios que engole todo o entorno, o que antes sustentava a vida de uma família ribeirinha agora se afoga nas águas do rio, junto a eles. Esse afogamento é o eixo que estrutura o rigor estético da obra: a diretora escapa de obviedades e mobiliza a mise-en-scène como instrumento de sufocamento. A colorização levemente dessaturada e voltada para tons terrosos confere ao cenário uma densidade que nega a imagem da floresta tropical exuberante, buscando destacar uma escuridão possível do Brasil profundo. A câmera se demora em corpos encharcados, em objetos que boiam onde antes havia chão, em planos que refletem os céus nas superfícies inundadas — e nunca límpidas. Tudo colabora para a sensação de que não existe lugar para firmar o pé e, a cada cena, afundamos mais.
O terror de observar o teto cada vez mais próximo das cabeças também existe no campo sonoro, aumentando a ideia da submersão. Ao manter continuamente o barulho das águas — seja o gotejar no interior das casas, a correnteza por baixo das palafitas ou a chuva torrencial nas telhas —, a construção sonora cumpre um papel de progressiva asfixia. Não há respiro. Mesmo os silêncios dos personagens são preenchidos pelos murmúrios líquidos que anunciam que o que está ruim pode — e vai — ficar muito pior. Trata-se de uma mixagem e edição de som pensadas para manter o espectador à beira da vertigem, com sensação crescente de desconforto e impotência.
Há de se imaginar que, em meio a contextos tão cruéis, a carga dramática seja tremenda para a dupla de atores principais do filme, mas aqui a intensidade emocional necessária encontra dois trabalhos irretocáveis. Irandhir Santos compõe um Vicente brutalmente humano e controverso, carregado de uma masculinidade problemática e ferida pelos acontecimentos do filme. Sua corporalidade aparenta esgotamento físico, assim como o olhar alterna entre rigidez e um desamparo preocupado, mas nunca suficiente para tomar decisões que poderiam mudar o curso da história. O protagonista — inspirado pela figura do pai morto no passado, também engolido pelo rio, quase como um reflexo do passado, assim como as águas são do céu —, movido por apego, teimosia e egoísmo, ignora a humanidade e as demandas de sua esposa, releva os perigos e dificuldades enfrentadas pelos filhos e se recusa a abandonar o que sobrou daquilo que entende por vida.
Já Priscilla Vilela entrega uma atuação que atravessa as dores de uma maternidade sufocada e, de certo modo, abandona certos aspectos de sua identidade em nome do luto. Sua personagem, Rita, é uma mulher igualmente complexa, que ainda carrega saberes da beira, se preocupa com o bem-estar de seus filhos, mas, diante da desgraça maior de sua vida, se vê sem norte algum e inclinada a abandonar tudo o que conhece. A mulher que, em um primeiro momento, teme diante da primeira menstruação da filha e pede segredo no intuito de proteger, quando a tragédia se abate sobre o seio familiar, é a mesma mulher que decide organizar sua dor e encontrar algum chão onde apoiar os filhos.
- “O que minha filha veio buscar na casa do Senhor?”
- “Eu vim buscar a vida.”
Rita, em resposta ao pastor evangélico, antes do seu batismo.
Ela se converte à religião protestante — gesto que marca a morte por afogamento de sua ancestralidade, de sua própria cultura, apesar do aspecto estereotipado e superficial com que os evangélicos são representados — e, posteriormente, busca reaver seus filhos, salvá-los do destino que nem todos da família tiveram a sorte de evitar. Mas, sem sucesso, é expulsa aos gritos por Vicente, e marca de vez sua despedida. Seu rosto carrega o cansaço de quem vê tudo se partir sem poder segurar os pedaços.
Ao fim, a rigorosa dimensão estética de Enquanto o Céu Não Me Espera (2024) converge para uma metáfora que se completa: nas águas do rio não boiam apenas objetos do cotidiano ou cruzes de madeira que marcam os antepassados — boiam, sobretudo, as memórias de uma família, uma cultura, um modo de vida e a própria teimosia de Vicente. Movido por um apego ferrenho à vida ribeirinha e por uma masculinidade problemática, ele encontra a solidão como único caminho possível. Termina por seguir os passos do pai, mas sem que nos seja revelada sua sorte — esta permanece afogada nas águas turvas do rio.


