Casablanca: 80 anos depois o romance impossível de Michael Curtiz segue cativante
Em 2022 resolvi rever alguns dos clássicos da história do cinema hollywoodiano, e “retornando à Paris” assisti ao excelente Casablanca (1942), de Michael Curtiz. O longa apresenta ao espectador a história de um romance impossível, vivido durante a 2ª Guerra Mundial e, por conseguinte, envolto por um clima de tensão social muito forte, visto que o longa teve sua estreia ainda durante a guerra. Todo o contexto de produção e lançamento do filme influenciou e muito na narrativa, que foi concebida obviamente sob a ótica estadunidense.
Neste cenário de guerra somos introduzidos à Casablanca, onde o exilado americano Rick Blaine (Humphrey Bogart) é dono de uma casa noturna, o Rick’s Cafe Americain, que recebe literalmente todo o tipo de gente. Sendo a cidade marroquina uma das rotas de fuga dos perseguidos pelos nazistas, o casal de revolucionários Ilsa Lund (Ingrid Bergman) e Victor Lazlo (Paul Henreid) recorrem ao influente Rick, para que consigam escapar das garras do implacável Major Streisser (Conrad Veidt). Acontece que o misterioso Rick guarda segredos não só sobre o motivo do seu exílio, como também do romance avassalador que teve com Ilsa no passado. Na posse de duas “cartas de trânsito” (documento assinado pela força policial francesa, que permite aos que o possuírem, a possibilidade de deixar Casablanca rumo a Lisboa, e de lá, aos Estados Unidos), Rick precisa escolher entre reviver um amor do passado ou auxiliar na sobrevivência de uma fagulha da resistência contra o nazismo.
Classificar a que gênero a obra pertence é uma tarefa um tanto complicada. O longa de Curtiz flerta bastante com a caricatura dosada dos melodramas estadunidenses, no momento em que apresenta o romantismo aflorado, a contraposição moral de herói e vilão, e obviamente, as figurinhas carimbadas desse subgênero, como a bela heroína Ilsa Lund, o corajoso herói Victor Lazlo, e até mesmo a figura vilanesca do Major Streisser. Outro gênero que imprime seus traços é o drama bélico ou drama de guerra, visível na intensidade da urgência político-social exibida nos dois primeiros atos. A ideia é basicamente a seguinte: quem vai à Casablanca procura distância dos horrores da Guerra, justamente na oportunidade de evasão rumo à liberdade dos Estados Unidos da América, valor implicitamente reforçado pela produção de 1942. Não bastasse o comentado, ainda é possível observar fortes influências do cinema noir, seja na fotografia soturna ou nas dubiedades retratadas em alguns personagens, como o corrupto Capitão da polícia Louis Renault (Claude Rains), o criminoso vigarista Ugarte, e até mesmo na figura do protagonista Rick Blaine, que nos é apresentado como um homem durão, misterioso, reservado e um tanto indiferente aos dramas alheios, fazendo questão de adotar a neutralidade como mantra.
Toda essa complexidade de gêneros e caracterizações poderia facilmente se converter em um problema narrativo grave, mas o excepcional roteiro de Julius Epstein, Philip Epstein e Howard Koch impediu qualquer desastre. Adaptado da peça teatral chamada Everybody Comes to Rick’s, o texto de Casablanca é responsável não só pela flexibilidade com a qual brinca com os gêneros, como também por uma porção de outros acertos, que poderiam facilmente ser matéria de um texto exclusivo sobre o roteiro. A competência impar com a qual os roteiristas introduzem ao espectador os principais aspectos pertinentes ao universo do filme, constrói uma noção sobre a atmosfera de tensão que envolve Casablanca, e simultaneamente, apresenta de forma eficiente os personagens principais da trama. Sem dúvida uma das melhores aberturas da história do cinema, que se utiliza da riqueza dos diálogos afiados, e sempre misteriosos, para lentamente mergulhar de vez o espectador na história.
O ótimo desenvolvimento do arco dos personagens principais também é um acerto do texto, com destaque óbvio para o protagonista. Rick Blaine inicia sua jornada como um homem respeitado em Casablanca, mostrando-se muito reservado, e com um certo grau de indiferença ao mundo exterior, não se envolvendo jamais em problemas alheios. A própria cena de abertura do filme sugere essa caracterização, quando Rick nada faz em relação a entrada de nazistas em sua casa noturna para a execução da prisão de Ugarte, pequeno criminoso que roubou duas cartas de trânsito após assassinar dois militares nazistas que as possuíam. Antes de ser detido, mesmo que tivesse a intenção de vendê-las, Ugarte acaba deixando-as na posse do protagonista, por nele confiar minimamente.
“I stick my neck out for nobody.”
“You’ll excuse me, gentlemen. Your business is politics, mine is running a saloon.”
Aqui o roteiro planta a semente do dilema moral do personagem principal, que estabelece a premissa norteadora de todo o argumento em Casablanca (1942), a moralidade. A dúvida de Rick em utilizar as cartas para fugir com Ilsa, ou cedê-las a ela e Victor — revolucionário importantíssimo na luta contra o nazismo, atual marido de Ilsa, e homem pelo qual a própria abandonou Rick na estação de trem, ainda em Paris — catapulta toda a transformação de um homem que outrora foi capaz de contrabandear armas na Etiópia, atuando como revolucionário, na busca pela contenção do avanço do fascismo na Europa. Esse espírito mais coletivista e engajado retorna gradativamente durante a trama, quando Rick finalmente tem a oportunidade de ressignificar a desilusão amorosa sofrida, sacrificando sua possível história de amor por uma causa bem maior que os problemas dos três.
“I’m no good at being noble, but it doesn’t take much to see that the problems of three little people don’t amount to a hill of beans in this crazy world.”
Há espaço também para interpretações metafóricas sobre a jornada de Rick Blaine e a política externa estadunidense no período da 2ª Guerra Mundial. Como mencionado antes, Casablanca (1942) foi um filme lançado no decorrer do conflito, mais precisamente após o Império Japonês devastar a base naval de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941. Tal episódio marca nos livros de história à entrada dos EUA na guerra, e assim, a transição do isolacionismo para o intervencionismo, à semelhança de Rick, que também encontra em seu arco o salto da indiferença rumo ao engajamento.
Indo um pouco além do texto, a direção de Curtiz que normalmente é ignorada aqui receberá elogios. É muito importante todo o trabalho da direção, em conjunto com o núcleo de fotografia, no que diz respeito a execução de movimentações, enquadramentos e angulações de câmera. De maneira bem modesta, quase que “observando à história”, o longa utiliza muito bem os planos médios e americanos, assim valorizando a bonita fotografia Noir de Edeson, que por sua vez, utilizou muito bem a luz e a sombra como ferramenta narrativa. Os protagonistas que durante todo o filme são iluminados de maneira a destacar as suas incertezas e angústias com as duras luzes e sombras, ao final, encontram na iluminação uniforme e mais homogênea em tons, a representação imagética da resolução de suas questões. Trata-se de um longa com uma cinematografia muito relevante no universo do cinema noir. Seguem alguns exemplos dessa relevância:

Luzes duras acompanhadas de sombras intensas marcaram a dubiedade e conflitos mentais de certos personagens

Outro exemplo do caso supracitado, ainda com a marca das diversas sombras em formatos de grade, remetendo a clausura mental de Ilsa ao passado, e o arrependimento de certas escolhas.

A iluminação suave e difusa que intenta tanto realçar a beleza da interprete, quanto fortalecer o trabalho de Ingrid Bergman, marcando toda a nostalgia e pesar de Ilsa.

Os olhos brilhantes e o rosto bem iluminado de Victor Laszlo, sempre consciente do seu papel e objetivos enquanto líder revolucionário e de resistência. O homem a ser seguido.

Mesmo na dor do sacrifício e da despedida, Rick é iluminado uniformemente, e abandona as sombras das desilusões que o converteram em um homem cínico e indiferente.
A escolha da direção por uma câmera mais observadora também favoreceu outro núcleo, o de elenco. Não existe uma só atuação em Casablanca (1942) que no mínimo não convença. De coadjuvantes a protagonistas, todo o elenco aproveita muito bem sua minutagem de tela, com destaque evidente para Bogart e Bergman. Humphrey realiza perfeitamente cada faceta de seu personagem, da indiferença ao amor, da seriedade ao sarcasmo, nada passa sem impacto, tudo é interpretado com louvor, e isso facilita e muito a afeição do espectador com o protagonista e seus dramas. Já Ingrid demonstra toda sua capacidade de atuação sem sequer necessariamente abrir a boca, sendo capaz de deixar evidente todo o remorso e saudade com apenas um olhar, na cena onde pede para Sam (Doodley Wilson) tocar a inesquecível canção tema do filme, As Time Goes By, de Herman Hupfield.
Falando em música, outro núcleo produtivo muito importante para o filme é o da trilha sonora. Assinada por Max Steiner, a trilha de Casablanca (1942) segue o estilo clássico da época, aperta os cintos do espectador, e o convida para a intensificação das jornadas dos protagonistas. Dos apaixonantes encontros de Rick e Ilsa, até o medo constante dos nazistas, o trabalho de Steiner é o empurrãozinho que faz torcer, chorar e temer. Não existe insensibilidade que sobreviva à trilha da cena do avião, no terceiro e derradeiro ato do longa.
Finalmente, resta elogiar os esforços empregados na realização de uma montagem mais acelerada, que contribuiu não só na criação do senso de urgência dos vários refugiados que aparecem na cidade marroquina, como também para um bom envelhecimento do filme ao longo do tempo. São 80 anos desde sua realização, e a obra segue possuindo um ótimo ritmo e cadência, que inibe qualquer sensação de cansaço ou desconexão com a trama. Aqui o tempo é um grande aliado, e só ajuda no engrandecimento de perspectivas.
Casablanca (1942) tem seu título de clássico não à toa, visto que entrega quase tudo que se espera de um excelente roteiro, além de possuir uma das cinematografias mais influentes da era de ouro hollywoodiana. Um filme agradável, que sabe se equilibrar muito bem quando o assunto é entretenimento e artisticidade, entregando um romance impossível apaixonante, e um drama de guerra que conversa com a história e a política estadunidense, tudo isso com um final que entende a moral da sua premissa, e não se preocupa em ser forçosamente feliz.
É maravilhoso saber que sempre teremos Casablanca.



