A Lasca: O Grito que não se ouve
Crítica de A Lasca, de Valdete Souza, assistido na noite de estréia, no dia 30/08/2025, quando aconteceu a exibição presencial da Mostra Rondoniense do 3° Festival de Cinema de Rondônia.
Artista norueguês notável, e um dos maiores precursores da estilística do Expressionismo no mundo, Edvard Munch pintou em 1893 uma das obras mais reconhecidas da história da arte: O Grito. Com o passar das décadas, o quadro se firmou como um ícone cultural em múltiplas mídias. Suas cores, que por meio das pinceladas deformam o espaço, desvelam uma angústia sem nome — aquilo que, nas palavras do próprio Munch, era “um grito infinito passando pela natureza”. Ao redor do fiorde de Oslo, a figura andrógina da pintura parece bramir dor e ansiedade.
Reafirmando sua representatividade cultural, o quadro de Munch é evocado logo em um dos primeiros planos de A Lasca, curta de Valdete Sousa, sob uma roupagem distinta, mas longe de ser uma mera piscadela ao espectador. Assim como no célebre quadro expressionista, o filme recusa a literalidade do real e constrói uma atmosfera em que o mundo não é representado tal como é, mas tal como é sentido. E o que se sente é desespero, claustrofobia, mal-estar. Um grito que, assim como no quadro, não encontra voz, mas reverbera em cada gesto, corte e ruído da narrativa.
O enredo nasce de uma banalidade: uma lasca perdida na beirada da mesa de centro da protagonista. Esse detalhe mínimo adquire proporções colossais. Sob um olhar pragmático, não haveria razão para tamanha perturbação; mas, na lógica do Expressionismo, o detalhe contém o mundo. O roteiro de Dennis Weber traduz esse princípio em gestos, silêncios e repetições, fazendo da lasca uma fissura simbólica — o ponto de ruptura da ordem doméstica que o filme imediatamente revela como falida. Desde o primeiro minuto, compreendemos que há algo errado com aquela mulher, com aquela família, com a lógica de vida que sustenta ambas.
Valdete Sousa conduz esse estranhamento por meio de uma encenação rigorosa. Num dos momentos mais precisos para ilustrar sua mise-en-scène, o filme apresenta um plano médio de conjunto: a família — pai, mãe e filha — sentada no centro da sala. O enquadramento organiza o espaço com simetria meticulosa. Um conjunto de sofá e poltronas Chesterfield preenche o centro do quadro; o sofá ao meio, as poltronas posicionadas simetricamente ao lado. À frente, a mesa de centro aparece parcialmente coberta por um pano, bloqueada pela pequena televisão antiga também centralizada no quadro. Ao fundo, uma mesa lateral sustenta um vaso de flores e um telefone de disco; do outro lado, uma luminária de canto completa a composição. Essa disposição de corpos e objetos transmite a imagem de um lar perfeito, tradicional — e justamente por isso, sufocante.
A cena começa com a família imersa em uma rotina aparente: o pai lê o jornal, a mãe e a filha assistem à TV. Tudo parece corriqueiro, mas é formalmente executado na intenção oposta dos comerciais de margarina. No campo sonoro, o som que parte da televisão é ininteligível — soa como vocábulos invertidos de uma língua estrangeira. Durante um bate-papo em 30/08, a diretora revelou que se tratava, de fato, da inversão de áudio de um diálogo estrangeiro, executada pelo editor e mixer Túllio Nunes. O resultado é uma experiência de deslocamento auditivo. Há poesia no fato de o único diálogo de um filme mudo ser utilizado como ferramenta narrativa do desconforto.
A mãe se levanta, prepara e monta a mesa de centro, servindo a todos antes de si mesma. Algo, à primeira vista, louvável e afetuoso. Contudo, em A Lasca, não existe beleza que sobreviva à linguagem. A montagem acompanha o vai e vem da personagem entre cozinha e sala por meio de cortes rápidos. Com o auxílio da fotografia de Édier William e do som de Nunes, esses cortes ganham desgaste de película e ruídos analógicos, sugerindo falhas propositais que contradizem a natureza impecável do enquadramento. O figurino de Nívea Louize e a maquiagem de Wesller Nascimento reforçam essa ideia de perfeição fabricada: rostos femininos sempre maquiados, roupas alinhadas, cumpridas e sem decotes, e na perspectiva masculina, roupa social, camisa, gravata e sapatos — uma harmonia que, quanto mais rígida, mais revela seu desconforto.
Enquanto se alimentam, o pai percebe a lasca faltando na mesa de centro e a mãe entra em prantos. Ele repousa brevemente a mão sobre o ombro da esposa e logo volta a folhear o jornal. A filha permanece alheia. Um corte leva a um primeiríssimo plano da protagonista: metade do rosto iluminada pela luz natural difusa que atravessa as cortinas. Lu Rodrigues transita do choro à apatia em segundos, como quem não tem mais energia para reagir diante da desolação. Sua performance se distancia do realismo, situando-se mais próxima dos sentimentos implícitos do que da verossimilhança.
As decisões formais de A Lasca dialogam com as principais características da pintura de Munch. O grito que não se ouve — presente tanto na figura do quadro quanto na protagonista — se manifesta aqui como um mal-estar inscrito no corpo, no ambiente e nas cores. Ainda afetada pela lasca, a mãe procura uma tesoura. A trilha inquietante e as expressões de Lu Rodrigues sugerem tragédia; contudo, a câmera subverte a expectativa. Ela usa a tesoura para cortar algumas flores de uma roseira no quintal.
Enquanto corta as rosas, o mundo do filme finalmente conhece o colorido. Mas esses novos matizes, longe de representarem vitalidade, ampliam o desconforto. A cor e a iluminação difusa, quase oníricas, surgem no universo do filme como o corte das flores — um gesto de subversão que entrega pesadelo no lugar do sonho.
Outro ponto que aproxima as duas obras é o desapego ao real. Tanto em O Grito, onde o céu se contorce em chamas, quanto em A Lasca, em que a família habita um espaço deslocado no tempo — retrô, retrógrado —, a realidade é menos importante que a sensação. A influência hitchcockiana mencionada por Valdete no bate-papo de 30/08 reforça esse deslocamento: as escolhas técnicas e estéticas conduzidas pela diretora — também responsável pela direção de arte — conduzem o espectador à atmosfera claustrofóbica típica dos filmes de Alfred Hitchcock.
Talvez a camada mais relevante de ligação entre Munch e Valdete seja a atualização de quem dá o grito. Em A Lasca, a figura feminina ocupa o centro da experiência aflitiva, deslocando a androginia universal de Munch para discutir o adoecimento da mulher no contexto da família tradicional brasileira.
Há uma cena em que a mãe, ao acompanhar a filha ao consultório odontológico, adormece. No sonho, fantasia roubar uma lasca da mesa de centro perfeita do consultório, provocando um incêndio para distrair os outros. Ao mesmo tempo, é atormentada por um pesadelo em que corre por uma avenida escura e chuvosa, vestida de noiva, apavorada, até tombar — e ser alcançada por aquilo de que tanto foge. Consciente e inconsciente se confundem. Ao acordar, ela aproveita um instante de distração e rouba uma lasca da mesa.
Tudo acontece sob o olhar de Audrey Hepburn, que estampa um quadro no alto da parede do consultório. Durante o bate-papo de 30/08, Valdete revelou seu apreço pela atriz, justificando a escolha da imagem para compor o ambiente. A referência não é gratuita: Hepburn, ícone do glamour e da feminilidade clássica nas décadas de 1950 e 1960, permanece símbolo da mulher perfeita. O quadro de Audrey é o espelho invertido da protagonista — o ideal de beleza, doçura e controle diante de uma mulher que sangra por dentro, tentando preencher lacunas impostas. O roubo da lasca é, assim, um gesto desesperado de confronto com essa imagem-modelo.
Ao final, resta o sangue. A protagonista chega em casa e encontra uma nova mesa trazida pelo marido. Ela aperta a lasca contra a própria mão, sangrando sobre a mesa enquanto o encara, à beira de perder o controle — mas performando o mais falso dos sorrisos. Ele sorri de volta. Juntos, revelam a farsa da normalidade. Problemas estruturais são ocultados por aparências, enquanto o mal-estar se infiltra e retorna, maculando tudo outra vez, como o sangue derramado sobre a porcelana da nova mesa, que não resolve o conflito: apenas o reinscreve.










