A imortalidade da memória, em A Memória que Ficou (2023)
Assistido na Mostra Virtual da 2ª edição do Festival de Cinema de Rondônia.
Diante de um muro de tijolos sem reboco, um retrato em fotopintura de uma jovem mulher é sustentado em frente ao rosto de outra mulher, aparentemente mais velha que a fotografada. Acompanhadas por um dedilhado de violão melancólico e elucubrante, as mãos já envelhecidas dessa senhora passeiam pelos detalhes da fotografia, evocando uma intimidade tão verdadeira que me arrisco a dizer que a mulher por trás do quadro seja a própria fotografada. Para além de qualquer palpite, essa cena específica de A Memória que Ficou (2023) sintetiza um dos motes conceituais do filme: a importância da preservação da memória como ferramenta de construção de identidade e de pavimentação de caminhos futuros.
O curta-metragem de Kaline Leigue utiliza-se da poesia e do experimentalismo da imagem para narrar a reconstrução da memória de sua avó, Eva, a partir de um único documento existente — uma certidão de óbito. As informações sobre Eva são introduzidas por meio de voice-over, que contextualiza os recortes de documentos e fotografias com relatos da mãe de Kaline. Esses relatos, por sua vez, são fundamentais para a sensação de presença de Eva, que permeia toda a experiência do espectador.
Se a ausência de registros concretos poderia ser um obstáculo, no filme de Kaline, essa escassez fortalece sua construção e organização de imagens. A diretora sabe exatamente como compor sua encenação, apostando em uma mise-en-scène que dispõe elementos visuais sobre mesas, toalhas de crochê e paredes de tijolos expostos. Os objetos e espaços de um lar carregam em si fragmentos da memória familiar, e deixá-los em segundo plano reforça sutilmente essa atmosfera. O cuidado na encenação é amplificado pela edição sensível desses materiais, combinados à poesia da narração. O filme constrói, assim, uma linha do tempo particular, onde fotografias e relatos da mãe da diretora dialogam com a certidão de óbito da avó. Esse processo culmina em uma última cena de grande força simbólica, que homenageia a coragem de Eva e sela a narrativa com um gesto poético. Ao dispor ramos de plantas sobre a certidão de óbito — entre eles, uma espada-de-são-jorge —, Kaline sugere uma reconciliação com seu passado familiar, ao mesmo tempo em que evoca uma proteção espiritual da matriarca para com seus descendentes.
Todo esse esforço de reconstrução encontra sua justificativa mais potente na cena descrita na abertura desta crítica. Sobrepor uma fotografia antiga ao rosto da própria fotografada é, de algum modo, um aceno do presente ao passado e, além disso, um reforço de que compreender nossa identidade passa também pelo conhecimento de nossa história familiar. Nossa trajetória de vida e os caminhos que escolhemos podem encontrar pistas nesse passado — desde que tenhamos a paciência e a coragem de organizar os fragmentos que ele nos oferece.
A Memória que Ficou (2023), de Kaline Leigue, honra o legado do cinema independente rondoniense por meio de seu ensaio fílmico experimentalista. Mais do que um exercício de preservação da memória, o filme exprime com sensibilidade a imortalidade que esse gesto nos permite alcançar e a importância desse olhar para a continuidade de nossa própria existência.




