A identidade musicocultural diversa de Porto Velho, em Concerto de Quintal
Centralizada no enquadramento, uma castanheira jovem se faz imponente, e ao seu redor, outras árvores formam um cinturão verde que quase preenche o céu azul de Porto Velho. No horizonte inferior do plano, reúnem-se alguns dos artistas que compõem o elenco de Concerto de Quintal e, ao som do violão de Bado eles entoam a canção Mundos, faixa do álbum Aldeias de Sons, do próprio tocador. Essa cena, apesar de brevíssima, marca a transição entre a chegada de Bainha ao encontro musical promovido pelo documentário, e o início das "histórias de quintal" que Silvinho Santos anuncia com humor, referindo-se ao amigo. Esse trecho de 36 segundos condensa boa parte das ideias que o filme busca estabelecer por meio da articulação entre imagem e som.
"Amazônia rio
É estrada
É um corredor de canoeira
Um cantador pro mundo inteiro
Seja agosto ou fevereiro
Sampa ouviu, sentiu teu cheiro,
Flora e pedra em sintonia
Emparelhando a poesia
Que o bixiga transformou
Dia e noite em fantasiaSudeste Norte
Mais o mundo todo
Toda arte se reparte em partes - cara metade!
Metade cá, metade lá, metade em todo lugar…
Amar-a-zônia, a maratona - África e Oriente na panela,
Um reggae no Ibirapuera,
Um mano chao de muitas léguas…
Me mande um tchau!
De muitas léguas…
Ô ô ô ô ô…"Mundos, faixa no4 do álbum Aldeias de Sons, autoria de Bado e Baaribu Nonato
Filmados em plano aberto, os artistas em cena são dimensionados como miúdos diante da grandeza do quintal que os cerca — mas também fazendo parte dele. São diversos: representam distintas expressões musicais e culturais da capital rondoniense. Os versos que cantam celebram uma identidade amazônica em trânsito, que se mistura ao circuito cultural nacional e internacional. Nesses segundos preciosos, justifica-se tudo o que o filme construiu até ali — nos que talvez sejam os 20 minutos iniciais mais expressivos que vi em um filme este ano — ao partir do acervo de Silvinho Santos e dos depoimentos de Bira Lourenço, BerAkilas, Benedita Nascimento, Binho, Ceiça Farias, Bado, Ernesto Melo, Nei Mura, Terezinha Menezes, Bainha, Vanilce Pinheiro, Marcela Bonfim, Êmillim Johnson, Gabriê, Caribé, Silvia Pinheiro e Yuri Lourenço, na busca por uma identidade musicocultural portovelhense.
Nessa procura conceitual, de uma identidade definidora ou um gênero representante da cultura na capital, a direção de Juraci Júnior revela um trabalho de pesquisa rigoroso e efetivo de sua equipe, formada pela professora Ivete Aquino Freire, o cantor e compositor Silvinho Santos, a produtora cultural Jussara Assmann, o multiartista e pesquisador de sons Bira Lourenço, e pelo fotógrafo e documentarista Luiz Brito. No filme, partimos do rico acervo de Silvinho, e dos depoimentos individuais de Bira, Binho e Bado, onde é possível encontrar um ponto comum importante: a identidade da música portovelhense se encontra não só na diversidade cultural de sermos uma jovem capital cosmopolita, mas também nas temáticas que nos são afetas, e que de alguma forma moldaram o nosso fazer musical.
“A diversidade tem uma identidade, a gente só precisa saber como
encontrar” — Bira Lourenço, musicista e pesquisador de sons
"Eu acho que a música de Porto Velho tem bem mais identidade na poética do que na rítmica. Na poética a gente consegue falar de um monte de coisas que são nossas: do Rio Madeira, da EFMM, da nossa natureza, dos nossos personagens que fizeram história artisticamente." — Ceiça Farias, musicista e compositora
"ós não temos exatamente uma música, nós temos temas. agora, a partir desses temas a gente foi conseguindo desenvolver algum tipo de maneirismo na execução, nos arranjos, que foram dando uma cara para nossa música." — binho, musicista e compositor
Essa meticulosidade da pesquisa terminou reconhecendo e incluindo influências diversas do samba, ritmos afro-caribenhos, batuques de terreiro, música sacra, corais, rap, hip-hop, rock, jazz, blues e eletrônica. Do carimbó com sotaque de Bira Lourenço, passando pelo cordelismo nordestino-beiradeiro da Quilomboclada, o hip-hop da floresta de Nei Mura, a cariberana do contagiante Caribé, e terminando na conteporaneidade do noiadance e a MPB de Gabriê. Existe espaço para tudo e todos, com algumas pontuações de gênero que o filme não se exime de fazer. É levantada a ausência de um registro extenso e celebração da participação feminina na história da musica portovelhense, o que culmina em outro acerto de pesquisa e roteiro, no cuidado de dar luz a programas de incentivo cultural da participação da mulher na música, como o Canta Mulher, que existe desde 1992.
Toda a identidade diversa musicocultural portovelhense se encontra com a narrativa sensível de Juraci, que habilmente promove uma mescla entre a expositividade das entrevistas e depoimentos, com a poeticidade das composições visuais executadas pela fotografia de Avener Prado. É impossível não se emocionar com as imagens que colocam o corpo dos artistas como parte das paisagens e locais da cidade enquanto eles performam. Esses números musicais aparecem como momentos de respiro aos depoimentos, e servem de certa forma como uma montagem demonstrativa das músicas e estilos que são comentados. Falando da montagem, vive aqui o maior trunfo narrativo do documentário de Juraci, com o ótimo trabalho de Eduardo Resing junto à edição de som de Verônica Brasil. Fugindo de qualquer amarra vococêntrica ou verbocêntrica — ainda que o filme possua nos depoimentos dos artistas a sua mola propulsora narrativa — Concerto de Quintal entende a música portovelhense como o elo entre as experiências de todos os musicistas. Isso fica explícito no fato de que a intimidade das varandas, quintais, salas de estar e estúdios particulares de todos eles, são conectadas pela música, no uso de pontes sonoras1 , tanto J-cut quanto L-cut2. Nessa esteira, algumas dessas ligaduras se dão por meio de sons diegéticos que são produzidos pelos artistas, e mesmo com o corte, o áudio permanece em tela, percorrendo ambientes distintos da cidade.
Para além do trabalho sonoro como elo, ao final, o principal fio condutor é conceitual, representado na ideia do quintal, não apenas como cenário recorrente, mas como fundamento simbólico da construção identitária proposta pelo filme. É nesse lugar — doméstico, íntimo, e ao mesmo tempo comunitário — que a música nasce, se transforma e contamina. O quintal é lugar de encontro, de transmissão oral, de resistência e criatividade; é onde o saber musical se constrói longe das lógicas do mercado enviesado pelo lucro acima de tudo, e próximo dos afetos, das histórias familiares, dos vizinhos e das ruas.
Ao final, as escolhas estéticas da cena de 36 segundos previamente mencionada ecoam na experiência fílmica como os sons reverberam no corpo de um instrumento. A opção pelo plano aberto registrando aquele momento, com todos aqueles artistas, vai além de dialogar com a canção interpretada: encontra também uma intertextualidade com a poesia de Manoel de Barros, em O apanhador de desperdício3s. Nela, há um apelo poético ao que é considerado desimportante, um olhar de carinho para as miudezas do cotidiano, uma atenção ao que é tido como insignificante. Esse é o adjetivo que o mercado fonográfico e a mídia atribuem ao panorama musicocultural local. O mercado não percebe na música portovelhense uma mina de dinheiro — e, com o fim do analógico e o auge dos serviços de streaming — acaba relegando nosso produto cultural ao esquecimento dos algoritmos, que ditam o que supostamente não importa, que apontam aquilo que é pequeno. Contudo, quando sobem os créditos finais de Concerto de Quintal, torna-se evidente a necessidade de reavaliar o conceito de miudeza. Trinta e seis segundos podem conter a densidade de um longa inteiro. Quintais podem abrigar a potência das misturas de culturas inteiras. Nesse sentido, Manoel de Barros e Terezinha Menezes estão alinhados.
"Meu quintal é maior que o mundo" - Manoel de Barros, em O apanhador de desperdícios
"Toda aquela gente tocando, sendo feliz, tem de anotar, né?" - Terezinha Menezes, aposentada, mãe de Silvinho Santos, quando questionada porque registrava os concertos de quintal


