A humanidade como o maior dos poderes, em Superman
A ambientação parece remota, com formações rochosas cobertas por gelo e muita neve. Somos informados, por letrinhas que surgem na tela, de que estamos em um universo onde humanos e metahumanos já convivem há pelo menos 300 anos. O Superman está na Terra há 30, mas começou seus atos de heroísmo há apenas 3. Nas 3 semanas anteriores ao tempo presente da narrativa, ele interveio em uma crise geopolítica que descambaria em guerra e na consequente morte de milhares. E, nos 3 minutos anteriores à sua primeira aparição no filme, o herói todo-poderoso perde uma batalha. A primeira imagem do Homem de Aço nos cinemas, em um filme solo pós-Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016, de Zack Snyder), é a de um Superman derrotado, falível, humano, despencando dos céus e se estatelando no chão.
Com essa abertura, Gunn rompe de imediato com a visão egóica e autossacralizante do Superman de Snyder. Não há sinal de reverência ou imponência na forma como o herói é filmado: seu corpo não flutua em contraluz, não paira sobre as pessoas como uma entidade superior. Ele cai. E, ao cair — sangrando, vulnerável, pedindo ajuda ao seu cão —, se aproxima de nós. Se Snyder preferia elevar o herói à condição de um deus dessaturado, plenamente ciente de sua magnitude, Gunn desmonta esse altar. Em seu lugar, ergue uma figura banhada em cores vivas, fruto da colorização de Stefan Sonnenfeld em articulação com a fotografia menos contrastada de Henry Braham — uma imagem que rejeita o tom sombrio e mitologicamente carregado da era Snyder. Este Superman inspira não pela distância ou grandiosidade, mas pela presença, pela humanidade concreta de suas ações.
Essa nova abordagem estabelece uma relação de horizontalidade entre Superman e os humanos — algo que já existia no filme de Richard Donner, em 1978. Mas Gunn não se contenta com a ideia cristã de um messias enviado à Terra por um pai misericordioso, que vê Kal-El como exemplo moral a ser seguido. Aqui, ocorre uma ruptura fundamental com a tradição: após uma invasão de Lex Luthor à Fortaleza da Solidão, a humanidade descobre — junto com o próprio Superman — que ele foi enviado à Terra com um propósito colonizador. Jor-El e Lara não viam Kal-El como esperança, mas como representante de uma raça evoluída. Enxergavam os kryptonianos como seres superiores, de cultura elevada, e mandaram o filho ao planeta não como um gesto de salvação, e sim de dominação. É nesse choque que nasce a verdadeira crise de identidade do protagonista: quem ele é, Kal-El ou Clark Kent?
Paralelamente, Luthor também sequestra Krypto durante a invasão, como forma de desestabilizar o herói e chantageá-lo. Superman erra. Morde a isca. Se expõe ainda mais perante uma humanidade já inquieta com sua presença. O mundo parece explodir ao redor da cabeça de Clark que, como todo bom ser humano, despenca mais uma vez. Inseguro sobre sua origem, preocupado com o destino do amigo, ele precisa de apoio de alguém que o conheça, que o veja. Conversa com Lois, sua amada, com quem vive uma relação conturbada e recente. Após o descanso e o amparo, mais calmo, ele decide se entregar à Justiça, mesmo desconfiando de que se trate de uma armadilha de Luthor. A justificativa? Krypto é um cão. Deve estar com medo, solitário. Superman diz que ama a mulher com quem está ficando há apenas três meses (mais humano do que isso é difícil ficar), e parte para o sacrifício, se submetendo aos perigos do incerto pela vida de um animal com quem ele se importa. Afinal, para ele, toda vida importa.
Boa parte das cenas em que o personagem está em tela não são demonstrações de poder, força ou destruição. O Superman de James Gunn prefere salvar vidas — das mais pequenas e inofensivas, como um esquilo, até as mais perigosas, como um Kaiju que cresce exponencialmente e que, aos seus olhos, precisa ser estudado, não exterminado. Seu instinto não é de devastação, mas de contenção. Ele prefere minimizar danos, preservar inocentes — e, diferentemente da versão que destroça cidades em nome do espetáculo (sim, Zack Snyder, estou falando de você), este Superman se mede pelo cuidado.
Essa abordagem se manifesta também na encenação das sequências de ação, que evocam o caos estilizado e ritmado das grandes sagas dos quadrinhos — não apenas pela coreografia inventiva dos embates, mas pela forma como a câmera se posiciona diante deles. A montagem alterna planos abertos, que situam o espectador no espaço e garantem clareza aos movimentos, com planos mais fechados, focados na perspectiva dos personagens. Muitas vezes, a ação se desenrola ao fundo, enquanto o primeiro plano destaca expressões, gestos e decisões — um uso inteligente da profundidade de campo, inclusive para gerar efeitos de humor.
Essa escolha formal de um caos visual coreografado, junto da montagem de William Hoy e Craig Alpert, permite a priorização dos momentos de heroísmo singelo do protagonista. A cena em que Superman salva um cachorro de ser esmagado em meio à batalha com o Kaiju é emblemática: no tumulto, esse gesto delicado ganha um destaque narrativo e visual que reforça sua humanidade, mesmo em meio a tantos personagens. Essa criatividade narrativa e essa multiplicidade de figuras já estabelecidas refletem diretamente a herança dos quadrinhos, cujas múltiplas linhas editoriais permitem reimaginar heróis sem recontar suas origens a cada nova história. Gunn se apropria dessa liberdade para construir uma narrativa menos protocolar, mais desprendida das fundações míticas tradicionais e focada naquilo que realmente importa: como o Superman age diante do mundo que escolheu proteger. E proteger esse mundo, para ele, significa intervir sempre que a vida estiver em risco, a despeito de quem isso incomode.
Nesse caminho, também é notável que o Superman de Gunn confirma a máxima de que toda obra de arte é produto de seu tempo. A valorização da vida pelo personagem é tamanha, que ele se envolve em um conflito geopolítico entre duas nações fictícias, Borávia e Jaranpur — que, no mundo real, respondem pelo nome de Israel (igualmente fictícia) e Palestina —, contrariando a posição tomada pelo governo estadunidense, que, em prol da manutenção dos interesses burgueses (Luthor), promove e apoia o genocídio em Jaranpur. Para além de avaliações críticas e qualitativas da abordagem geopolítica da narrativa, o fato é que o Superman de Gunn coloca a vida à frente dos interesses do "Jeito Americano", que o Homem de Aço de Donner outrora afirmou defender, e assim dá mais um passo rumo à distinção das concepções anteriores do personagem.
Outro momento que reforça essa ideia de tradução do personagem para um olhar distinto e hodierno — e que soluciona a crise de identidade do protagonista — é toda a sequência seguinte ao resgate de Krypto. Extremamente fragilizado devido à exposição à kryptonita, com o auxílio de Lois, o herói e seu parceiro canino retornam para sua verdadeira casa, a fazenda dos Kent. Nesse contexto, a frase "pai é quem cria" nunca fez tanto sentido. Os pais de Clark, Jonathan Kent e Martha Kent, se apresentam para Lois, e, nos minutos seguintes, demonstram, por atitudes, todo o amor que pais são capazes de sentir pelos seus filhos. Deitam-no na cama do quarto que mantiveram intacto, permitem-no repousar com conforto e, no dia seguinte, demonstram mais amor da forma com que conhecem: Martha com atos de serviço, lavando as botas do filho e o chamando para ver o noticiário que o chama para o dever; Jonathan com palavras de afirmação sábias e emotivas, que destacam os limites da parentalidade, o poder das escolhas e da ação, e o orgulho imenso que sente do próprio filho. Ele tem nome próprio e pais presentes — e ambos são humanos.
Nesse novo olhar, Clark Kent emerge como figura central. O filme propõe uma inversão: não é Kal-El o escolhido, e sim Clark quem escolhe ser quem é. A força do personagem não vem mais da grandiosidade da sua origem, mas da ética construída a partir da vida terrestre. Seus valores foram cultivados na fazenda de seus pais, na convivência humana, no contato com a fragilidade e a complexidade do mundo real. Clark executa um esforço de reidentificação a partir dos escombros de uma mentira fundadora. Ser Super, aqui, não é cumprir uma missão predestinada, mas tomar a decisão de agir com responsabilidade e se apegar aos desígnios do seu próprio povo.
Essa releitura se distancia um pouco das referências evidentes ao cristianismo — onde o enviado é expressão direta da vontade de Deus —, mas não o expurga, mantendo a essência de uma espiritualidade existencial e sensível, que reconhece a dor, o erro, o fracasso e, ainda assim, escolhe o bem. Apresentar o herói como alguém que pode ser vencido, enganado ou abandonado por sua própria história — e que, nesses momentos, aprende a receber o auxílio de sua amada, família e amigos — é reimaginar o que significa ser bom em um mundo imperfeito. Essa é a força de Superman (2025): compreender a humanidade como o maior dos poderes e, assim, criar esperança.
Ao deslocar o centro de gravidade do céu para a Terra, Gunn responde a uma demanda contemporânea. Se em 1978 precisávamos de deuses que caminhassem entre nós, ou em 2013 ansiávamos por um ser supremo que nos levasse ao sol, hoje buscamos humanos que, mesmo caindo do céu, escolham levantar do chão — e lutar conosco e por nós.








