A autoralidade é uma ilusão, em um universo de filmes robóticos
Autoralidade é uma ilusão em um universo de filmes robóticos, e ressalvadas algumas exceções pontuais dentro da linha do tempo do Universo Cinematográfico Marvel, a nova aventura de Stephen Strange se assemelha a várias outras dentro dessa sistemática mecanizada. Ainda que consiga imprimir uma estilística particular "Raiminiana", oferecendo uma experiência sensorial diferente de qualquer coisa vista dentro do universo cinematográfico da Casa da Ideias, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) se contenta com a mediocridade típica da escola fordista de cinema capitaneada por Kevin Feige.
Tal qual em sua trilogia do Homem-Aranha, Sam Raimi buscou aplicar seu estilo característico de direção, só que dessa vez, com muito mais recursos financeiros. Além da dramatização possível na jornada de Stephen Strange, não faltaram oportunidades para a demonstração de uma mise-en-scène de horror à la Raimi (o típico terror escrachado, com jogos de câmera subjetiva, angulações baixas, planos holandeses, zooms rápidos e algumas pitadas de horror corporal, sempre manipulando a iluminação e fisicalidade dos objetos em cena). No entanto, autores lidam não apenas com a forma, mas também com o conteúdo de suas obras, e nessa dicotomia a sensação é de desequilíbrio. Mesmo um diretor com a expertise de Sam Raimi não foi capaz de retirar/mascarar do filme as amarras dessas engrenagens.
Parte importante das contribuições de Raimi para o cinema de heróis passa pela habilidade de sensibilização dos protagonistas, na conversão daquele caráter divino em uma fragilidade verdadeiramente humana. A capacidade de dosar de forma equilibrada momentos de ação e dramatização, possibilitaram uma aproximação muito maior do público com as vivências de Peter Parker, na trilogia do Amigão da Vizinhança. A dor do luto, os dilemas de uma vida dupla, problemas financeiros, desentendimentos de casal... É muito mais fácil criar um apego com histórias que se assemelham às nossas, e indo além, é preciso despender tempo para construir esse laço com os espectadores. Kevin Feige e o UCM, infelizmente não podem e nem querem dispor desse tempo. Contar histórias com paixão e zelo é coisa de cineasta, e o Kevin Feige além de odiar cinema, é só um empresário do entretenimento.
Na linha de produção de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, soluções escapistas são usadas em larga escala, e conveniência talvez seja a melhor palavra para resumir a experiência como um todo. Os estudos de personagem de Wanda e America foram os mais penalizados no processo. A primeira — vivida por Elizabeth Olsen — mesmo com os esforços de dramatização, perde boa parte da profundidade construída em Wandavision (2021), e sofre com a limitação razoavelmente pobre e teimosa de suas motivações. Já a segunda — estrelada por Xochitl Gomez — se encontra relegada não só a ser ferramenta de progressão da história, como também a ser o anúncio de uma possível futura ferramenta do UCM, visto que seus poderes são muito grandiosos e oportunos dentro da atual fase da indústria.
Dito isso, não é difícil vislumbrar que quando lhe foi permitido, Raimi mostrou pitadas do que imaginava para a encenação do seu longa, entretanto, nem a identidade do diretor foi capaz de vencer a urgência da trama maior do UCM, de Kevin Feige. Essa é a sensação que mais desaponta. Um filme que por várias vezes demonstra potencial de ser maior, mas que gasta vários minutos de sua duração ao papel de ferramenta da conexão entre referências (passadas e futuras), necessárias para a manutenção de uma máquina ilógica (na verdade, logicamente capitalista), que prefere interligar várias tramas de filmes e séries, do que aprofundar os temas dos estudos de seus próprios personagens.
Pouco importam as teorias e expectativas megalomaníacas de fãs que não foram cumpridas ou satisfeitas. O que se discute aqui vai além de expectativas prévias questionáveis, e adentra na questão do cinema autoral nos filmes de herói, ou até mesmo nos contextos de serialização fílmica feitas por grandes sagas e afins. É possível existir autoralidade nesses contextos tão robotizados de produção artística? As promessas de filmes revolucionários, vanguardistas, e espetaculares realmente fazem algum sentido, vide Chloe Zhao em Eternos, e agora Raimi, a vítima da vez? Respostas que não posso dar, e ideias para um próximo texto talvez, depois de muitos estudos e leituras a mais no futuro.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) é levemente diferente do que normalmente se vê no UCM, por motivos de Sam Raimi, mas nada de encher os olhos. A promessa de um filme memorável vai infelizmente ficar para a próxima, mas até aí tudo bem, né? O próximo longa sempre é o mais aguardado, com cena pós-crédito de prêmio, e promessas infindáveis de excelência.



